domingo, 30 de setembro de 2007

Genocídios

Em 1941, um grupo de estudantes parisienses, que incluía a sobrinha do general Charles de Gaulle, Geneviève de Gaulle, criou um grupo de resistência à ocupação nazista. As atividades desse grupo centravam-se na publicação de um jornal clandestino, Défense de la France, editado por Philippe Viannay. Com cerca de 450 mil exemplares, foi o jornal de maior circulação dentre a imprensa clandestina na Segunda Guerra Mundial.

Em 30 de setembro de 1943, esse jornal publicou, pela primeira vez, fotos dos campos de concentração e extermínio nazistas. As fotos mostravam prisioneiros de guerra russos e crianças; desnutridos, maltratados e até mesmo enterrados vivos. Ainda não aparece nesse jornal nenhuma menção aos judeus, dos quais 6 milhões seriam mortos nos campos nazistas. No total, cerca de 11 milhões de pessoas morreram durante a guerra, vítimas da perseguição nazista.

Muito já foi escrito sobre esse evento, símbolo das piores barbaridades que podem ser executadas pelo homem. Recomendo fortemente o excelente documentário Arquitetura da destruição, do sueco Peter Cohen, o livro Eichmann em Jerusalém, de Hannah Arendt, e a história em quadrinhos Maus, de Art Spiegelman.

Outro livro fundamental é Modernidade e holocausto, do sociólogo europeu Zygmunt Bauman. Nele, Bauman argumenta que o Holocausto não é uma peculiaridade da história da Alemanha ou da história dos judeus. Ao contrário, o Holocausto é parte da história de todo o mundo ocidental. Simplesmente porque "vivemos em um tipo de sociedade que tornou possível o Holocausto e que não teve nada que pudesse evitá-lo". O Holocausto foi uma associação do "ódio comunitário mortífero", um sentimento muito antigo que provavelmente nunca deixará de existir, com a eficiência da sociedade moderna.

Isso faz com que os genocídios sejam uma questão recorrente. Desde o genocídio armênio, em 1915, quando se empregou pela primeira vez a expressão 'crimes contra a humanidade', passando pelo Holocausto nazista e pelos expurgos de Stalin, até os recentes massacres em Srebenica e Ruanda, o genocídio de Estado parece longe de acabar (no Brasil tivemos o chamado 'massacre do capacete' contra os índios Ticuna, realizado por particulares, mas o Estado teve a sua participação absolvendo os culpados).

A punição para os crimes de genocídio ainda engatinha. Apenas três anos depois da publicação das fotos no jornal francês, em 30 de setembro de 1946, o Tribunal Militar Internacional reunido na cidade de Nuremberg, condenou 16 dos 24 dirigentes nazistas capturados por 'crimes contra a humanidade' (abaixo, capa do jornal Süddeutsche Zeitung de 1º de outubro, com o resultado do julgamento).

Em 1948, a Convenção para a Prevenção e Punição do Crime de Genocídio foi adotada pela ONU, entrando em vigor em 1951 (os EUA só se tornaram parte da Convenção em 1988, mesmo assim mediante algumas reservas. O senador democrata William Proxmire discursou favoravelmente ao tratado em todas as sessões do Congresso americano desde 1967, quando tomou posse, até 1986).

Apenas em 1998, no entanto, essa lei foi aplicada, quando Jean-Paul Akayesu, prefeito de uma pequena cidade de Ruanda, foi condenado à prisão perpétua, considerado culpado de nove acusações de genocídio. Poucos dias depois, Jean Kambanda, ex-primeiro ministro de Ruanda, se tornou o primeiro chefe de governo a ser condenado por genocídio.

sexta-feira, 28 de setembro de 2007

História do jazz em duas palavras

Nascido nos EUA na virada do século XIX para o século XX, o jazz foi uma das formas musicais mais inventivas e mutantes já vistas no mundo. Surgido como uma música ritmada, usada para acompanhamento de enterros, o jazz já foi música para dançar, música popular, música difícil, música para músicos, instrumental, cantado, acústico, eletrônico...

Parte considerável dessa história pode ser sintetizada em um nome: Miles Davis. Kind of Blue, de 1959, é um marco na história da música e universalmente considerado como um dos maiores álbuns de jazz da história, senão O álbum que define o que é jazz. Essencial para entender a força desse disco é a sua gestação, coletiva. Miles compôs os temas, organizou os músicos e as gravações, mas não fez nenhum ensaio ou arranjo. A gravação que ouvimos é o resultado da improvisação de uma das melhores bandas da história da música: John Coltrane, Bill Evans, Julian "Cannonball" Adderley, Wynton Kelly, Paul Chambers, Jimmy Cobb e o próprio trompetista. Como disse um crítico, "talvez seja exagero dizer que, se você não gosta de Kind of Blue, você não gosta de jazz, mas é impossível imaginar alguma coleção de jazz em que ele não seja a pedra fundamental".

Mas Miles Dewey Davis III não gravou apenas Kind of Blue. Sua primeira gravação como band leader foi em 1947, quando tinha apenas 21 anos, e contava com Charlie Parker como um dos músicos. Entre 1949 e 1950, ainda muito novo, Miles fundiu o bebop, estilo 'difícil', anti-comercial, de solos rápidos e mudanças rítmicas freqüentes, com os arranjos dançantes das big bands numa atmosfera relaxada e melódica. O LP que resultou dessas gravações, Birth of the Cool (1957), marcaria a música pós-bebop e, como anuncia o título do LP, seria essencial no desenvolvimento do cool jazz.

Dez anos depois de Kind of Blue, Miles faria história novamente com "o mais revolucionário álbum da história do jazz", Bitches Brew. Gravado logo após o festival de Woodstock com outra grande banda - que incluía Wayne Shorter, "Chick" Corea, John McLaughlin e Billy Cobham, entre outros -, Bitches Brew trazia guitarras e teclados eletrônicos e rejeitava os ritmos tradicionais do jazz: "como os grupos de rock, Davis deu ao ritmo um papel central nas atividades da banda. Seu uso de uma imensa sessão rítmica [dois baixistas, dois ou três bateristas, dois pianistas e um percursionista, todos tocando ao mesmo tempo] oferece espaços largos e ativos aos solistas". O álbum duplo apresentava apenas seis músicas, longas improvisações editadas por Miles e pelo produtor Teo Macero a partir das gravações originais, feitas em apenas três dias.

Bitches Brew foi pioneiro no uso do estúdio como um instrumento musical, trazendo pilhas de edições e efeitos que eram parte integral da música. Embora soasse como uma gravação normal de um grupo de caras tocando coisas impressionantes, grande parte do som era baseada na tecnologia do estúdio para criar uma fantasia que nunca fôra tocada. Miles e o produtor, o lendário Teo Macero, usaram o estúdio de gravação de novas maneiras radicais [...]. E, com edições intensivas das fitas, Macero criou muitas estruturas musicais totalmente novas que depois foram imitadas pela banda nos shows ao vivo. Macero, que tinha educação clássica e foi provavelmente influenciado pelas experiências de música concreta dos anos 1930 e 1940, usou a edição como uma forma de arranjo e composição. (você pode ler a íntegra desse texto, em inglês, aqui)

E Miles não parou por aí. Guitarras distorcidas e ritmos de funk aparecem em On the corner (1972), uma tentativa de "conectar-se com uma audiência negra jovem, que esquecera o jazz em favor do rock e do funk", segundo seu próprio autor. Já Doo-bop (1992) trazia uma parceria com o produtor de hip-hop Easy Mo Bee. Miles começou a planejar o álbum quando tocava trompete com a janela aberta, tentando acompanhar os sons típicos da cidade de Nova Iorque (High speed chase, a quarta música do disco, traz um acompanhamento de buzinas e barulho das ruas). Mas Doo-bop seria a última gravação de Miles e ainda não estava completo quando o trompetista morreu, em 28 de setembro de 1991.

Enquanto esteve vivo, Miles Davis foi um dos maiores inovadores da música do século XX e "pode ser argumentado que o jazz parou de evoluir quando ele não estava mais lá para empurrá-lo". Com efeito, hoje o jazz tradicional é uma repetição do que já foi feito e a inovação está, em grande parte, na música eletrônica, no acid jazz e no hip-hop, gêneros que podem ser encontrados na mistura musical de On the corner e Doo-bop. Miles Davis, criador do cool jazz, do jazz modal, do jazz-fusion, do jazz-rock, "em uma época em que o jazz se volta para a academia e para orquestras de repertório ao invés de seguir em frente, é uma lembrança da qualidade essencial da música de invenção sem fronteiras, usando todos os meios disponíveis".

terça-feira, 25 de setembro de 2007

E o vento levou...

Quando o exército alemão usou armas químicas pela primeira vez durante a Grande Guerra de 1914-1918, o alto-comando inglês reagiu com indignação:

É uma forma covarde de guerra que não pode ser elogiada nem por mim, nem por nenhum soldado inglês... Não podemos ganhar essa guerra a não ser que matemos ou incapacitemos mais inimigos do que eles o façam a nós e, se isso só pode ser feito copiando a escolha de armas feita por nosso inimigo, não podemos nos recusar a fazê-lo. (ten. gen. Ferguson, comandante do II Corpo)

Assim, em 25 de setembro de 1915, as tropas britânicas avançaram sobre as trincheiras germânicas sob nuvens de cloro gasoso. O ataque foi um fracasso. O vento estava fraco e as nuvens venenosas se formaram sobre a terra de ninguém, atrapalhando o ataque e, em alguns trechos, foram sopradas de volta para as trincheiras de origem. Não obstante, a Força Expedicionária Britânica foi responsável pelo maior número de ataques com uso de gás venenoso dentre todos os combatentes.

Ao final da guerra, uma comissão foi montada para discutir as regras da guerra moderna. O relatório da subcomissão encarregada da organização da guerra química dizia:

O comitê não tem a menor dúvida de que o gás é uma arma legítima na guerra, e considera que se pode desde já prever que será usado no futuro, pois a história não registra nenhum caso de uma arma comprovadamente útil na guerra ter sido abandonada por nações que lutam pela sobrevivência.

Apesar disso, um tratado foi concluído em 1925 proibindo o uso de armas químicas e bacteriológicas, logo ratificado pela maior parte dos combatentes da Grande Guerra (os EUA e o Brasil só o assinaram na década de 1970). Até lá, o gás já havia sido usado diversas vezes como arma, mas apenas em batalhas coloniais, quando havia uma grande diferença tecnológica entre os combatentes e as armas químicas podiam ser mais eficazes.

Com a chegada da Segunda Guerra Mundial, o uso de gases tóxicos era dado como certo por todos os lados no conflito. Todos os países estocaram armas químicas e máscaras anti-gás, mas apenas poucos casos isolados foram relatados e os países responsáveis trataram imediatamente de se desculpar pelos incidentes, garantindo ter se tratado de acidentes. Após 1918, o gás viu uso intensivo como arma de guerra apenas na guerra Irã x Iraque (1980-1988), quando cerca de 20 mil soldados iranianos morreram envenenados pelos ataques químicos de seus adversários (cerca de 1/4 do número de mortes causado pelas armas químicas na guerra de 1914-1918).

Talvez a história do uso do gás seja a história do uso da bomba atômica. Ao contrário do gás, desde o início a bomba se mostrou eficiente como arma. Talvez, até, eficiente demais. Como arma de dissuasão, toda a Guerra Fria foi a era da guerra atômica. Mas a atual situação política não é favorável ao uso da bomba atômica como arma de guerra (o que, claro, não exclui a possibilidade de terrorismo nuclear; veja o excelente documentário Sob a névoa da guerra). Luis Fernando Veríssimo, em uma crônica particularmente inspirada, escreveu uma vez:

O símbolo trágico do século foi o físico Robert Oppenheimer, um dos pais da bomba atômica, que depois se recusou a colaborar no desenvolvimento da bomba de hidrogênio, num dos raros momentos do século em que o remorso alcançou a ciência e Fausto pediu sua alma de volta.

segunda-feira, 24 de setembro de 2007

Uma civilização islâmica?

No dia 24 de setembro do ano de 622 (pelo calendário juliano), o profeta Muhammad chegou à cidade de Yathrib para dirigir as preces da sexta-feira. Ele havia deixado sua cidade natal, Meca, devido à hostilidade da liderança da cidade. Yathrib, por sua vez, era um oásis localizado a cerca de 350 km ao norte e seus líderes haviam escolhido o profeta como líder religioso e árbitro de suas disputas tribais. Em breve, a liderança do profeta se irradiou para tribos vizinhas e a cidade que escolhera como residência mudou seu nome para Madînat al-Nabî, a 'cidade do profeta', atual Medina.

Essa migração é conhecida pelo termo árabe hjirah (هِجْرَة) ou 'hégira'. A partir dessa mudança, os fiéis companheiros do profeta deixaram de ser uma minoria perseguida e tornaram-se a base de uma nova comunidade religiosa. A própria palavra, cujo significado é de 'busca de proteção', tem um sentido duplo: representa ao mesmo tempo a saída do profeta e de seu círculo de fiéis da hostilidade de Meca à proteção de Medina e a passagem do mundo do erro para a verdade da revelação divina. Dezesseis anos depois, em 638, o califa Omar decretou o ano da hégira como o início do calendário islâmico.

O islã, no entanto, era visto pelos cristãos contemporâneos como apenas uma heresia até o reinado do quinto califa omíada, Abd al-Malik (685-705). Foi ele quem iniciou o processo chamado pelos historiadores de ‘organização e ajustamento’, substituindo as estruturas administrativas das regiões conquistadas por uma burocracia na qual o árabe se impôs como língua administrativa e financeira. Iniciou, também, um ambicioso programa de construção de edifícios públicos, no qual se destacava o Domo da Rocha, em Jerusalém, e colocou em circulação uma nova moeda de ouro, o dinar, nome derivado do romano denarius. Nesses edifícios e moedas, o califa mandou inscrever versículos do Alcorão que proclamavam o Islã como uma nova religião, independente das anteriores:

Foi Ele quem enviou seu mensageiro com a Sua orientação e a religião verdadeira para que a faça prevalecer sobre todas as outras (9: 33).
Ele é o Deus único. Deus, o eterno refúgio. Nem gerou nem foi gerado. Ninguém é igual a ele (112: 1-4).

Assim nasceu a 'civilização islâmica'. Seria um erro, no entanto, tratar o Islã como uma civilização monolítica (como o fazem, entre outros, Bernard Lewis e Samuel Huntington). Hoje, o mundo abraçado pela revelação islâmica compreende "mais de um bilhão de muçulmanos espalhados pelos cinco continentes, que falam dezenas de línguas diferentes e possuem tradições e histórias variadas"; como qualquer outra cultura mundial importante, "o Islã contém uma espantosa variedade de correntes e contracorrentes, cuja maioria não é discernida pelos orientalistas tendenciosos, para os quais o islamismo é objeto de medo e hostilidade, ou por jornalistas que não conhecem nenhuma das línguas ou histórias relevantes e se contentam em se basear nos estereótipos que perduram no Ocidente desde o século X." (Edward Said)

O que militantes como Lewis e Huntington querem é apenas enfatizar como uma fictícia 'civilização islâmica' rejeita uma também fictícia 'civilização ocidental' e seus valores, "como se um bilhão não passasse de uma pessoa e a civilização ocidental não fosse mais complicada do que uma simples sentença assertiva".